domingo, 24 de maio de 2015

O desenvolvimento da resiliência durante a infância

Médico e pesquisador Ricardo Ghelman discute aspectos essenciais para o desenvolvimento da resiliência.
Entrevista por Fernanda Ortega sobre o tema da Semana Mundial do Brincar "Para ter criatividade, resiliência e coragem é preciso brincar!"

Ricardo Ghelman - pesquisador, pediatra e me´dico da fami´lia, especialista em oncologia pediátrica e em medicina antroposo´fica - aborda, em entrevista para a Aliança pela Infância, o desenvolvimento da resiliência durante a infância e critica o modelo pedagógico predominante na educação básica atual.

Como você define resiliência?
Defino resiliência como uma capacidade de enfrentar criativamente a vida, especialmente situações de estresse. A questão é como a pessoa lida, no dia a dia, com os seus desafios. Uma pessoa bem compreensiva, que veja sentido no que está acontecendo, é alguém com maior resiliência, uma pessoa mimada pode se tornar pouco resiliente, por exemplo. 

Qual é a importância de desenvolver a resiliência durante a infância?
Só se desenvolve a resiliência durante a infância, que, para mim, é o período de 0 até 21 anos de idade. Resiliência é uma construção até a vida adulta.

E como você caracteriza a infância?
Caracterizo a infância como três infâncias, cada uma é responsável por desenvolver uma das três áreas da psique humana. A primeira infância, de 0 a 7 anos, desenvolve a área motora, comportamental, de fantasia. A segunda infância, que vai dos 7 anos até a puberdade, é mais afetiva. É o período que se desenvolve a inteligência emocional, que é um dos aspectos fundamentais da resiliência. Durante a terceira infância, que corresponde à entrada no Ensino Médio até a faculdade, desenvolve-se absurdamente o lado cognitivo: a capacidade de compreensão.

Como é possível contribuir para o desenvolvimento da resiliência na criança?
Um dos aspectos da resiliência é a personalidade inata da criança. Tem criança que nasce com uma tendência a ser mais resiliente que outra. Isso não dá para educar, é uma pré-condição, não podemos fazer nada a respeito. A genética influencia a personalidade, mas a natureza da criança – que é o aspecto existencial do ser humano – transcende a genética. Essa natureza é a individualidade da criança. Defino esse aspecto existencial, espiritual ou da individualidade do ser humano, como aquilo que diferencia dois irmãos gêmeos univitelinos com a mesma genética. Sou um exemplo clássico, porque tenho um irmão gêmeo univitelino. É a mesma genética, mesmo pai, mesma mãe, mesma educação, mas são duas pessoas diferentes. Isso rompe completamente com a ideia de que o ser humano seria resultado apenas da genética e do meio ambiente. Há também uma outra personalidade, que é desenvolvida por influência ambiental. Essa é a personalidade educável, que tem a ver com cultura.

“Um adulto travado emocionalmente, pode ter certeza, teve dificuldades na segunda infância”

E o que é possível desenvolver durante a infância para que a pessoa se torne mais resiliente, independentemente de sua personalidade inata?
A resiliência envolve três inteligências: a inteligência comportamental - relacionada à força de vontade e à ação no mundo -, a inteligência emocional e a inteligência cognitiva - que tem a ver com QI, Quociente de Inteligência. É preciso passar por toda infância para desenvolver todas essas inteligências. A primeira inteligência, que tem a ver com a primeira infância – de 0 a 7 anos - dá capacidade de manuseio da vida: saber enfrentar situações e buscar ajuda. A inteligência emocional, ligada à segunda infância, dá significado e sentido às coisas. A terceira inteligência dá capacidade de compreender o mundo. São essas três inteligências que tornam as pessoas inteiramente resilientes.

As três infâncias desenvolvem as três inteligências, mas o lado cognitivo da criança pequena é muito pequeno se comparado o lado cognitivo de um rapaz de 15 anos de idade. O aspecto afetivo é muito forte aos 8, 9, 10 anos de idade, muito mais forte do que quando a criança tem 5 anos e depois quando ela tem 16. Então, um adulto travado emocionalmente, pode ter certeza, teve dificuldades na segunda infância.

Um adulto resiliente é uma pessoa bem formada nos três âmbitos de inteligência, nas três infâncias. Com isso, é possível enfrentar as situações da vida e não ficar mal. Ficar mal significa entrar em conflito por não saber lidar com recursos criativos, nem compreender as coisas, nem ter força de vontade. Essa pessoa fica estressada e adoece. Isso interfere na felicidade e na saúde.

“O grande canal dos professores é a arte, que é um caminho para os sentimentos”.

Que tipo de dificuldade durante a segunda infância tornaria uma pessoa travada?
A experiência de pais muito racionais que educam sem poder falar de sentimentos. O modelo mais tradicional de pais no mundo moderno ocidental é de pais muito inteligentes e sedentários, que, na primeira infância, não brincam com a criança e a deixam na realidade virtual, na televisão e no videogame. Na segunda infância, que é um período afetivo, eles têm dificuldade de falar de sentimentos e repreendem as crianças. Na terceira infância, eles querem explicar o mundo para as crianças, mas elas não são amigas deles. Então, um adulto travado pode ter tido pais que não sabem lidar com sentimentos.

Os professores podem ajudar a combater esse travamento?
O grande canal dos professores é a arte, que é um caminho para os sentimentos. A criança se expressa em pintura e em desenho, por exemplo. Uma criança com câncer não consegue falar sobre a morte, mas ela consegue fazer desenhos sobre a morte.

Isso acontece em todas as três infâncias que você citou mais cedo?
Em todas as infâncias, mas especialmente dos 5 anos e até a puberdade, que é a época que começa a desabrochar sentimentos de amor e ódio em relação ao mundo. O lado artístico aqui é fundamental. Na primeira infância, a arte é uma brincadeira, a criança pinta brincando. Aos 7 anos, a criança tem a parte motora desenvolvida de tal forma que pode aprender um instrumento musical. Nesse momento, a criança tem habilidade para expressar o que está pensando. Até sete anos, a criança não consegue fazer nenhum esporte ou arte direito, ela precisa ter experiências bem livres.

“Os nomes das coisas podem aparecer, mas o objetivo não é que a criança se torne uma nomeadora de coisas”.

O que é mais importante, na primeira infância (de 0 a 7 anos), para a criança desenvolver a resiliência, tendo em vista que durante essa etapa da vida ela desenvolve especialmente a motricidade a partir do brincar?
De 0 até 7 anos, a criança desenvolve principalmente os membros e a barriga. Ela come e dorme muito. As funções vegetativas são muito importantes. Quando a criança está acordada, a consciência dela não é racional. A pior coisa que os pais podem fazer nessa época é conceituar o mundo para a criança perguntando: “Filho, isso é um triângulo?”, “Filho, isso é cor vermelha?”, “Filho, o que é isso? É uma girafa?” Essa é a época da criança fantasiar. Os nomes das coisas podem aparecer, mas o objetivo não é que a criança se torne uma nomeadora de coisas. Isso quebra com a criatividade dela.

“É fundamental desenvolver a percepção na primeira infância.”

Qual o problema de nomear as coisas para as crianças nesse período da vida?
Imagina se toda vez que uma criança vê um ser humano ela diz: “isso é um ser humano”. Se isso acontece, ela nunca vai poder perceber a singularidade de um ser humano. A mesma coisa acontece com as borboletas. A criança precisa ver que uma borboleta não é igual a outra, porque tem um azul especial, por exemplo. Se a criança adere ao conceito “borboleta”, ela nunca vai distinguir uma borboleta da outra. O mundo dela vai virar pastel, ela vai chamar as coisas de leão, borboleta e casinha.

É fundamental desenvolver a percepção na primeira infância. Os sentidos são uma experiência que não tem a ver com conceitos. Pais muito classificatórios têm filhos muito classificatórios.

“Você quer entrar no mundo do seu filho ou quer que ele entre no seu mundo?”

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